domingo, 1 de julho de 2012

Mitternacht




O som sibilante dos automóveis domina a noite melancólica. Vão para todas as direcções menos para a que ela deseja, o mesmo acontece-lhe com a vida.
Um pouco de si é transportado em cada carro que passa, segue mesmo para onde não quer, mas nos que param e levam-lhe o corpo, é roubado mais do que isso. A brisa fresca fustiga-a, pouco coberta, manequim vivo na berma da estrada.
Na mente surge-lhe o acolhedor quarto de infância e primeiros anos de juventude, cálido e sempre pronto para o seu repouso.
Todos os que param e levam-na para os mais estranhos sítios lhe parecem iguais. São apenas o garante da sobrevivência, e por vezes um vislumbre de seu fim. As regras são ditadas antes do saque à liberdade, mas nem sempre respeitadas.
Na periferia escura da cidade um luxuoso veículo encerra o seu movimento junto desta silhueta feminina, o seu ocupante procura carne, não sentimentos, o vidro desce...
-Mano! As lágrimas, misturadas com a maquilhagem, sulcam um misto de embaraço e alegria. Não se viam há 12 anos...




Texto surgido entre um momento em que apenas se ouvia o trânsito a soprar o vento na sua passagem e a audição do tema Mitternacht, presente no álbum Autobahn dos Kraftwerk.


segunda-feira, 30 de abril de 2012

O Rapto

Bastava o vento frio para gretar a pele de quem tinha que labutar no exterior, o céu estava bem limpo e o sol incandescente como no dia mais quente do ano, mas naquela manhã não aquecia. Não seria esse pormenor que o reteria em casa, apesar de pouco dado a tanto frio, saiu como em todas as manhãs, desta vez mais entusiasmado que o costume. O vizinho com quem se cruza diariamente reconheceu-lhe na face esse contentamento e uma expressão que ao longo destes anos todos nunca vira tão marcada. Devia ser toda aquela satisfação que o aquecia naquela gélida manhã, pensou o vizinho que tardou um pouco mais a sair de casa. 
Entrou no seu carro e seguiu viagem num percurso também pouco usual, estacionou de seguida numa zona de bonitas moradias. Com o sorriso com que acordara, esperou calmamente  por quem tinha decidido dar uma boleia. Um vulto surgiu na porta da casa defronte do sítio onde estacionara. Antes de sair do carro e escrever um pequeno bilhete apenas disse entredentes, com um sorriso ainda mais aberto, "Hoje vais perceber o que nos custa o dia a dia!".    


Texto escrito num dia gélido de Inverno após este: Passos .

terça-feira, 10 de abril de 2012

10h57- 10 de Abril

A sua tristeza passou para as nuvens que desde manhã se acinzentaram. Estacionado num bairro improvável de uma pequena cidade ouvia apenas de fundo as notícias que já tinham sido repetidas vezes sem conta no rádio e duas vozes graves à conversa, que aumentavam a distância do seu mundo para o real.
Na chapa do veículo soam as primeiras gotas de chuva e as vozes graves desaparecem simultaneamente. A sua espera para não se sabe bem o quê continua, cada vez mais absorto sente-se a esvaziar, tudo se afasta e funde-se com a tonalidade da atmosfera.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Passos...


As pedras miúdas cravam-se na pele até então habituada ao conforto do calçado. Deixado no terreiro coberto de gravilha ainda se pergunta sobre o que lhe terá acontecido. Apenas três coisas lhe desapareceram, os seus caros sapatos, as meias e o telefone que veio a encontrar uns metros à frente completamente desfeito.
Distante de casa e do seu quotidiano, descalço na gravilha que lhe castiga os pés, incontactável, não tinha outra solução senão trilhar o seu caminho de regresso à rotina, desta vez bem doloroso! Não sabe porquê nem quem lhe fez isto, não fora agredido, apenas o descalçaram e deixaram sem forma de comunicar num sítio desabitado que não conhecia bem a vários quilómetros  dos seus trajectos habituais. Enquanto caminhava dolorosamente remexia nos bolsos como que em busca de uma explicação, encontra um papelinho muito dobrado onde apenas se lia, 
"Senhor Ministro, 
A vida de muita gente assemelha-se a este seu regresso a casa.".

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Mãos





Ameaças ou afectos, de tudo são capazes.
Tanto guerreiam como assinam a paz, rasgam um percurso.
Imploram pela sobrevivência ou ostentam a vaidade desmedida.
A efemeridade deixa-lhes marcas, queimaduras, cortes, arranhões...
Enquanto os corpos não falecem marcam os diferentes ritmos da humanidade.

sábado, 26 de novembro de 2011

16h30- Novembro

Os raios do fim da tarde, antes mesmo da noite prematura, aquecem os corpos que se expõem, não lhes dá muito calor, mas o suficiente para contemplar a descida do sol e o dourar das árvores.
Prematuramente anoitece e as horas de luz terminam. Os dias de sol de Novembro são como que dias para não congelar, uma amostra de actividade primaveril, só que encurtada às dezassete e trinta!  
Também sentimos um abreviar da nossa actividade, a necessidade de recolher antes do frio se apoderar dos corpos. Entretanto há que fruir do dourar de tudo o que nos rodeia e acumular calor para mais dias com noites prematuras.


Escrito em Novembro de 2008 num fim de tarde à janela a aproveitar o calor do sol.



sábado, 15 de outubro de 2011

Sábado, 15 de Outubro

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Sou de uma cidade em morte lenta há décadas, num país que também não reanima e tem cada vez mais silenciosas convulsões. A minha região tem sido desfigurada pela corrupção e ganância, aquele par inseparável! Até a própria língua é desrespeitada a nível oficial e por exigência estatal!


Sendo relativamente jovem assisti só a parte do longo processo, mas já pago por ele, como infelizmente sei que os mais novos terão um débito ainda maior por tudo isto.


A irresponsabilidade política e social dura há quase quatro décadas, primeiro acusou-se o regime autoritário, felizmente esse terminou, mas a democracia que passamos a ter possibilidade de escolher nunca tem estado à altura das exigências. Sinais do bipartidarismo que tem pautado as governações.


O país precisa mesmo de uma mudança de mentalidade, não só governativa, mas de todos, é aprender a falar menos do dia de Abril e tornarmo-nos cidadãos a sério, é termos não só direitos mas também deveres, valorizarmo-nos, ter uma participação mais activa e de alguma forma responder às carências. Não o fazemos de forma triunfal, vai de outra maneira, desde que o contributo seja dado já é um passo. A mais pequena acção de sensibilização, umas linhas, uma conversa são uma ajuda. A cidadania e participação nunca foram tão importantes como agora na época conturbada que vivemos. Se metade daquela metade que não votou pensasse assim estaríamos bem melhor! É claro que a ambição seria que a grande maioria dos recenseados fosse às urnas, mas temos que ser realistas e ter a noção de que se ocorrer uma mudança esta será gradual e levará tempo, isto com a esperança de que no futuro a coisa melhorará, mas isso só o saberemos com a passagem do tempo.


Mas o que este cidadão perto dos 30 anos procura é expressar os seus anseios e perspectivas sobre o que o rodeia. Portugal tem pela terceira vez a necessidade de recorrer a ajuda externa para se financiar desta vez de forma muito mais assustadora que as duas anteriores. O desinvestimento no sector cultural já se fazia sentir há algum tempo mas com a chegada do actual governo, a situação económica global e sobretudo a falta de visão, terminou-se com o Ministério da Cultura. Agora temos apenas um Secretário de Estado da Cultura que trabalha na directa dependência do Primeiro Ministro, estranho, não é? Não acredito que sem o órgão central de coordenação da actividade cultural consigamos manter uma política decente de gestão e programação cultural, assim como a gestão e intervenção no património. Seria um aspecto a potenciar para auxiliar o país e não um sector de desinvestimento...


Como formado precisamente na área de Património Cultural entristece-me sermos passados para trás em concursos por não termos a denominação História no curso, não interessa a competência, a qualidade geral do pessoal docente e da estrutura curricular, muitas vezes superior aos tradicionais cursos de História nas suas diversas variantes. Uma situação a rever...


Outro ponto muito negativo é aquele que eu chamo a muleta do voluntariado, geralmente estão todos à espera que os trabalhos e investigações sejam gratuitos ou por um preço simbólico. Quando vai a uma consulta médica não paga? A precariedade, nem sei se vale a pena abordar com profundidade, pois é transversal a todo o mercado de trabalho e já muito foi dito, o Estado não dá exemplo, tendo pessoas anos a fio nessa condição.


Mais uma grande maleita são as pessoas não qualificadas que ocupam postos de trabalho indevidos e aquela espécie que só quer que chegue o fim do mês, promove-se assim a incompetência e deixa-se pouco espaço a quem tem juventude, vontade e competência. Há necessidade de renovação e actualização de quadros na área cultural, é um sector estratégico onde temos possibilidade de ser referência e mostrar qualidade, temos que mudar alguns paradigmas e preconceitos. Há uma geração capaz de mostrar isso à espera de oportunidades que aconselho seriamente a não desperdiçar e apostar forte nela. Pode ser que assim as cidades que morrem lentamente há décadas sejam pontos de renovação e dinamismo, a afirmação daquilo que somos capazes de fazer.





Quinta-feira, 13 de Outubro de 2011